Disciplina - Filosofia

Filosofia & Ciências

03/11/2008

Ocisolakulihiso w ociwa: A filosofia da arte em umbundu

Patrício Batsîkama
Ocisolakulihiso w ociwa, ou seja a filosofia da arte em Umbundu, vai ser hoje à nossa reflexão. Tentaremos falar da concepção muntu-angolana em relação à arte, tendo em conta o sistema metafísico que sustenta a sua argumentação. Os pontos basilares para efeito serão 1) imitação, 2) naturezas do belo; 3) imaginação e destino da arte. A «definição da arte como mimésis (imitação) se traduz como concepção grega do Ser e da Verdade» (Lacoste: 2006,p.7). Tal linha definicional, em princípio, choca com o sistema metafísico muntu-angolano por um lado, e por outro lado, os dispositivos filosóficos que sustentam a produção artística indo-europeia desvirtuam a essência muntu-angolana exprimida na prática. Para prová-lo, vamos começar com mimésis (Ser e Verdade).
O padre Joaquim da Silva, no seu dicionário, escreve: «o verbo ser não existe em Lunyaneka. Traduz-se às vezes por linga, -kola, kahi, -li-ko: existir» (da Silva:1966,p.546). A verdade é «otyili» ou melhor «ocili» (da Silva:607). É fundamental sublinhar que a palavra oci-li (verdade) deriva de –li (existir). Tendo em conta o conceito de «existir», a estruturalização de mimésis indo-europeu não poderá se transplantar na realidade muntu-angolana de maneira literal. Seria contra-senso, nesse caso, pretender compreender a arte (a sua definição) produzida pelo muntu-angolano limitando-se no sistema metafísico indo-europeu (Leibniz). Na concepção muntu-angolana, arte não se define pelo mimésis (Ser e Verdade) porque arte muntu-angolana não é estática (Ser/Existir), nem veicula exclusivamente pela Razão (Verdade). O mimésis não existe na concepção muntu-angolana embora tentamos constantemente assimilá-lo à «teoria da Ideia» de Platão visível no cosmo angolano. Como sabemos, Nietzsche reverteu o platonismo (que qualificava arte vulnerável ao erro, inverdade, aparente sensibilidade, ilusão) para uma possível compreensão da «arte». Nem com isso salvou-se do niilismo.
Curiosos são os termos significando mentira, mentir que não deixam de ser ligados ao existir (li) no sentido muntu-angolano: 1) ovo-li (de Silva: 345); 2) oku-liaka (Etaungo: 298); 3) li-tendela: mentir negando (da Silva: 345). Convém sublinhar duas noções oriundas da Grécia: a) «ta onta tê atêtheia» (a realidade verídica); b) «onta phainomena» (realidade aparente). A primeira chegou a produzir o «belo natural» e a segunda o «belo artístico». O mémisis determinou a prática do «bom gosto» assim como a sua tradicional teorização, de modo que a própria classificação da arte escapa ao Ser, ora é exótica, naifa, primitiva, ora passa a ser erudita ou classificada. Como Platão pretendia erigir uma sociedade com justiça, o «onta phainomena» pareceu-lhe criar as ilusões que, ao exemplificar com a pintura de Zeuxis, parecia perigoso e qualificou por conseguinte de skiagraphia (trompe-l’oeil) o «belo artístico» (em belas-artes).
Como acabamos de ver, partindo da IMITAÇÃO, os sistemas metafísicos muntu-angolano dum lado e de outro indo-europeu não são literalmente compatíveis. Os substratos ontológicos que sustentam a funcionalidade prática não se aproximam por causa da discrepância das suas essências. A teorização feita pelo Platão e presente na toda história da teorização da arte pelos Indo-europeus até Hegel (até mesmo Heidegger), era incompatível a prática muntu-angolana. Enquanto o rigor de imitar a natureza gerou leis e princípios de proporcionalidade e perspectivas (harmonia, grandeza, simetria) o que se justifica claramente com «tâ ontâ tê atêtheia», o sistema metafísico muntu-angolano permitiu que seja praticado uma «onta phainomena» que não tenha nada a ver com skiagraphia mas com um simples ociwa que obedece ao li que não é só verdade (o que é pré-existência relativa) ou kali (existência, depois da morte), como também é ovo-li, (mentira = skiagraphia?), li-tendela (mentir negando: negar a existência), ou seja li-laka, li-lakume (ausência da existência) (Etaungo: 284).
Embora com Hegel mimésis tenha ganhado uma semântica ampla, o muntu-angolano apresenta uma peculiaridade que é ndungu, lûngu essência da arte. Ndungu/lûngu está acima da verdade sensorial assim como é uma «inteligência» que, ainda que seja o homem o seu criador, ultrapassa os parâmetros intelectuais humanos. Arte aproxima Ka-lûnga dos homens através das matérias que possuem o «li» que pode ser Verdade/Mentira (pseudo-Ilusões) e da sensibilidade que alvora uma dimensão ontológica diferente. Ou seja o «ndûngu/lûngu» muntu-angolano é pseudo-Ser e pseudo-Ilusões, fundamentalmente diferente do mimésis indo-europeu. O pseudo-Ser explica o pré-existir absoluto e relativo do muntu tanto como as pseudo-Ilusões dão as fantasias da arte um suporte de verdade do mesmo modo que as verdades sensoriais passam apenas ser as interpretações imbuídas de falhas transmissoras. O ndûngo/lûngu permite que o «objecto criado» tenha uma personalidade vital diferente de muntu, discrepante dos santos e muito próximo de Ka-lûnga. O que significa que o «belo artístico» não é superior ao «belo natural», tal como reza tradição hegeliana.

Natureza do belo
«A Vida é Bela» significa que na Vida temos Altas e Baixas, tal como o sistema metafísico indo-europeu permite que o Ser Humano perceba a noção do belo. Com Hegel, convém voltarmos a falar do «belo natural» e «belo artístico» e as suas implicações na noção (prática/teórica) da arte.
«Gosto» é universal pela sua «ossatura sensorial», tendo porém uma diversidade morfológica e explicativa. «Bom gosto» ou «Mal gosto», ambos não deixam de ser «gosto» e a arte, na concepção indo-europeia, pendurou-se no «bom gosto» de modo que a função social da arte era de harmonizar cada vez mais a sociedade. Kant, ao falar da Crítica da Faculdade de Juízo obedece a noção segundo a qual o «belo» é 1) deduzido pela qualidade do gosto; 2) aquilo que apraz universalmente sem conceito; 3) a forma da finalidade dum objecto sem finalidade; 4) aquilo que é reconhecido como objecto duma satisfação necessária (Kant:1968,p20-31;1959,p.47-78).
Ora no sistema metafísico muntu-angolano, o «gosto» não determina a «ossatura sensorial» duma prática artística. Se «Ser Humanista» fosse um gosto, seria verdade que o «gosto» tenha cabimento no sistema muntu-angolano. «Ser humanista» é definido pela própria natureza. Ora, o «gosto» bom ou mal, são duas opções humanas que vão debaixo da «pré-existência relativa». O «mal gosto» li-lakume é uma das opções que impede o Homem poder vir a existir (depois da morte). O que significa que na teoria kantiana sobre «gosto universal», estão excluídos na compreensão da prática artística muntu-angolana, os pontos (1) e (2). A função social da manifestação artística tem uma finalidade, mas o próprio veículo da sensibilidade (gosto) é sem finalidade gozando duma personalidade vital próximo de Ka-lûnga e adjacente de muntu. Os objectos mediáticos são fundamentalmente «sem finalidade» mas o interpretante e o intérprete aprovam a finalidade do mesmo na sua integração social. Isto é, o ponto 3 tem lugar no sistema muntu-angolano. Mas aquilo que Kant chama de satisfação (saciação, ou seja Wohgefallen) é praticamente diferente no «muntu-angolano» que chama e-kululuko. O termo deriva do verbo kula: crescer, tornar--se grande e sereno, acalmar-se consoante tempo ou seja kula luku, uma satisfação que é raramente desinteressada, mas sim interessada.
Quer dizer «Vida é Bela» em muntu-angolano seria «Li é ndûngu/lûngu» ou traduzindo, «pré-Existir/Existir é Bela». E sendo a Arte ponto embrionário entre «li» e «ndûngu/lûngu» na percepção humana, não se pode reduzir-se a «vida» (que tem começo e fim). Arte não tem fim; Arte não se limita a sensação/percepção; Arte goza duma personalidade diferente do seu criador; Arte pertence ao mundo feérico que pré-existe e pós-existe mesmo se a sua substância material for destruída. Essa é a tradução do Belo na concepção muntu-angolana.

Imaginação e Arte
Nas suas lições Hegel já terá remarcado que arte não era algo absoluto. Convém sublinhar que a arte convencional (aquilo que é chamada «arte tradicional») estipula que o «objecto fabricado» seja uma expressão individual, razão pela qual depois de fabricar, deve-se consagrá-lo (fazendo introduzir na terra/oci/ohi/nsi). Nessa arte foram produzidos objectos com orientação dos «Anciãos» e consulta dos «Antepassados». Por isso chamamos essa arte de «convencional», para evitar a expressão mal-intencionada de «tradicional» que supõe que o destino da arte seja «um desfecho religioso».
Mas além dessa arte, temos uma outra que é de livre expressão individual com a carga metafísica que poderá baralhar «arte», «objecto mediático» e «belo» (Shopenhauer: 1966,21). Se a «ociwa» goza duma personalidade vital diferente de muntu, diante do seu criador e perante a matéria na qual foi extraído, é porque também é diferente de Ka-lûnga (Deus) cuja essência se aproxima. Trata-se da IMAGINAÇÂO criadora (Panofsky: 1968,37).
Nietzsche propõe «Apollon» e «Dionisyos» como dois princípios da Estética: no «principium individuationis», Apollon é «deus da individualidade» (conhece-te a si mesmo) e Dionisyos passa a ser «deus da ilusão da consciência» que produz o primeiro. (Nietzsche: 1977; Lacoste:75-76). Com essa classificação Nietzsche aproxima-se da concepção muntu-angolana. Apollon (Suku) e Dionisyos (Kalûnga) se traduzem como duas extremidades da «Li/Lûngu». A imaginação que precede e sucede a «ociwa» (arte) é próxima tanto do «li», ou seja a «pré-existência/existência» assim como de «ndûngu/lûngu» sem portanto incorporar-se nos perímetros ontológicos destes. Nota-se que o destino da arte se resume a sua própria essência como uma dimensão embrionária de Muntu com o mundo que o cerca. E sem pretender corrigir Aristóteles que procura na «purgação» algumas paixões como medo e misericórdia (Aristóteles:2003,1453a), o destino da arte, na concepção muntu-angolana é ukwa-hênda (compassividade): geralmente hênda é entre os Umbundu e Côkwe emoção, compaixão, misericórdia (Alves:1951,p.150), aquilo que os Kôngo chamam ñkênda: caridade, misericórdia, compaixão, dores, mágoas. (Laman, p.716), ou seja o henda dos Kimbûndu. E como podemos ver, o sistema metafísico muntu-angolano classifica sem dificuldade o «pessimismo» da tragédia grega que levou Aristóteles a «inventar» uma purgação, e que Nietzsche se esforçou tanto para eliminar a ambiguidade (Nietzsche:1977) assim como Schopenhauer quando examina as obras do pintor Raphael e da tragédia também (Shopenhauer:1966,23-43).
Acção e conhecimento constituem a primeira etapa da percepção sensível que constrói o ego-visão (persuasão) do muntu-angolano. As substâncias dialécticas entre ego-visão e cosmo-visão estabelecem a segunda etapa que é compreendida pela construção analítica (convicção). A justaposição sujeito-objecto permite a compreensão da persuasão e convicção. Pois é, a percepção sensível é vulnerável a incerteza, razão pela qual verdade, inverdade, mentira pertencem a sensibilidade (osalu, nkênda, nduluku) estão aglomerados em «li». No «lûngu», a «consciência necessária», ou se devemos emprestar a expressão do Kant, «consciência pura» passa a ser «alvo» a atingir pela ânsia, vontade e desejo humano. E, não limitando em «mimésis» a arte constitui a sua própria dimensão ontológica: ndûngu/lûngu.
Vida Cultural/JA
Fonte: http://www.jornaldeangola.com/artigo.php?ID=95342&Seccao=cultura
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